História do domingo: Ainda dá tempo?
A dor que dói mais
Clarice Lispector dizia que “ninguém estará perdido se der amor”. No entanto, algumas pessoas preferem se preservar até ter certeza de que o sentimento é recíproco.
De qual lado você está?
O Livro do Desassossego
Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a idéia que fazemos de alguém. É um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma idéia nossa.(...) As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois 'amo-te' ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada uma quer dizer uma idéia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constiui a atividade da alma.
A citação faz parte do “O Livro do Desassossego”, escrito por Fernando Pessoa sob o heterônimo Bernardo Soares.
Publicado postumamente, o livro é uma coleção de fragmentos, pensamentos e reflexões que exploram a condição humana, a solidão, a busca de sentido e a angústia existencial.
Abordando também a amizade, a arte e o amor, “O Livro do Desassossego” é um convite a pensar sobre a complexidade dos sentimentos humanos.
No trecho destacado, Pessoa sugere que amamos a ideia que construímos de outra pessoa, não a pessoa em si. Amamos as nossas projeções e idealizações. Ou seja, é a nós mesmos que amamos.
Seguindo a mesma linha, a psicanalista Ana Suy diz que “sempre amamos sozinhos, pois cada um ama a seu próprio modo, cada um ama com sua história, com seu sintoma, com seus perrengues transgeracionais”.
Esse raciocínio vai contra a ideia de que o sentimento é ou não recíproco, sugerindo que, na verdade, o amor é unilateral.
Mas e aquele casal que está junto há mais de 50 anos? E aquela amizade de infância que sempre foi baseada em trocas generosas? E aquele relacionamento sólido que você jura ser recíproco?
Nesses casos, o que pode existir, são dois amores. Cada qual do seu jeito. E da sua forma.
Porque como Fernando Pessoa bem disse, “dizem os dois 'amo-te' ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada uma quer dizer uma idéia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constiui a atividade da alma”.
Ainda que o outro seja totalmente claro em relação aos seus sentimentos, nós jamais saberemos se a sua concepção de amor é equivalente à nossa.
Mesmo quando tentamos nos conectar, há uma parte do outro que nunca podemos alcançar totalmente. E como o ato de se conhecer implica em desconhecimento, o coração alheio será sempre um mistério.
E ainda que muitos sintam um aperto no peito ao ler isso, saber que o amor é solitário é também libertador. No final do dia, não é a garantia de reciprocidade que vai te preencher, mas a simples capacidade de amar.
Ainda dá tempo?
(Baseado em uma história real)
Francisco e Gustavo se conheceram por acaso. E ainda que várias histórias de amor também sejam obra dessa aleatoriedade da vida, no caso dos dois, o destino teve que caprichar um pouco mais.
Era janeiro de 2019. O Francisco tinha acabado de terminar um relacionamento de dois anos, e estava em uma fossa bem doída.
Pra tentar curar a dor com a água salgada, comprou uma passagem de ônibus para o Rio de Janeiro. Era pra ele ter saído em uma terça-feira às 09h, mas o seu despertador não tocou.
Francisco foi correndo pra rodoviária, mas perdeu a passagem. O jeito foi comprar outra para o ônibus das 11h, que estava lotado e só tinha mais um assento. Por sorte, ao lado do Gustavo.
Na primeira troca de olhares, aquela frase que diz que “é preciso uma coincidência qualquer para que o amor se instale” nunca fez tanto sentido.
E essas coincidências foram além do assento de ônibus. O Gustavo e o Francisco estavam lendo o mesmo livro — “O Grande Mentecapto”, de Fernando Sabino — e iam se hospedar no mesmo hostel no Rio de Janeiro.
A história de amor já estava escrita na mente do Francisco, mas como o destino gosta de fazer arte, Gustavo estava indo viajar pra encontrar o seu namorado, que morava em Cabo Frio.
Ainda assim, os dois conversaram bastante durante a viagem. Francisco contou sobre o seu término, e Gustavo foi um bom ombro amigo.
Chegando no Rio de Janeiro, eles foram juntos para o hostel, e se olharam como quem deseja que as circunstâncias fossem diferentes. Aquilo tinha que significar alguma coisa.
Coincidência ou não, no terceiro dia da viagem, o Gustavo brigou com o seu namorado. Voltou sozinho para o hostel, e encontrou o Francisco. Não estava sozinho mais.
Eles sentaram na calçada e conversaram sobre tudo. Menos sobre o relacionamento do Gustavo. Era como se o resto do mundo não existisse. Só aquele momento importava.
No dia seguinte, tudo voltou ao normal. Gustavo e seu namorado fizeram as pazes, mas já era a hora de voltar pra casa.
Francisco e Gustavo, dessa vez, estavam em ônibus diferentes. Os dois voltaram pra Vitória, no Espírito Santo, mas sabiam que não dava pra manter contato. Aquilo não parecia certo.
Um mês depois, no entanto, o relacionamento acabou. Gustavo mandou uma mensagem pro Francisco e os dois combinaram de se encontrar. Macarrão, pesto, vinho e um disco de vinil.
A noite foi perfeita, mas já começou com uma quebra de expectativa: em quatro meses, o Francisco se mudaria pro Paraná. Passou em um concurso “dos sonhos”, e estava de mudança pro Sul.
Nesses 4 meses em Vitória, os dois se amaram loucamente. Foram ao cinema e a festinhas. Curtiram ressacas com coca-zero e hambúrguer, e passaram longas manhãs enroscados na cama.
Sabiam que a troca era recíproca, mas Francisco foi bem claro: isso aqui tem prazo de validade.
No dia de ir embora, se despediram sem pressa. O Gustavo deu uma carta pro Francisco, e pediu pra ele ler quando estivesse dentro do avião — reforçando que não precisava de resposta.
"Amor é isto: a dialética entre a alegria do encontro e a dor da separação. E neste espaço o amor só sobrevive graças a algo que se chama fidelidade: a espera do regresso. De alguma forma a gota da chuva aparecerá de novo, o vento permitirá que velejemos de novo, mar afora. Morte e ressurreição. Na dialética do amor, a própria dialética divina. Quem não pode suportar a dor da separação não está preparado para o amor. Porque amor é algo que não se tem nunca. É o vento de graça. Aparece quando quer, e só nos resta ficar à espera. E quando ele volta, a alegria volta com ele. E sentimos então que valeu a pena suportar a dor da ausência, pela alegria do reencontro."
A citação é de Rubem Alves, mas resume como eu sinto sobre o nosso amor. Mesmo longe, desejo que você se encontre, se perca e seja feliz. Talvez eu não tenha significado pra você o que você significou pra mim, mas tudo bem. Amor a gente sente sozinho, e eu te agradeço por me fazer sentir tanto. Ah, e se a saudade bater, “saiba que a casa é sempre sua”.
Com amor, Gustavo.
O Francisco chorou o voo inteiro, mas não respondeu à carta. Estava determinado a seguir sua vida, conhecer pessoas novas e a se conhecer melhor. Um amor à distância só dificultaria as coisas.
Hoje, já faz quase 5 anos que esse desencontro aconteceu. Os dois continuam se seguindo nas redes sociais, mas não trocam mensagens.
O Francisco se envolveu com algumas pessoas, mas ninguém foi como o Gustavo. A cada relacionamento que ele termina, se lembra desse antigo amor — e ensaia respostas pra carta que nunca respondeu.
Sem muitas notícias, o Francisco não sabe se o seu sentimento é recíproco. Imagina que não, mas como “amor a gente sente sozinho”, ele não vê problema em se expressar.
E pede desculpas. Desculpa por não ter respondido a carta, e por não ter sido sincero sobre os meus sentimentos. Desculpa por ter desistido de nós, quando você sempre acreditou.
Desculpa por estar falando isso tarde demais e desculpa se te fiz sofrer. Se a casa ainda for minha, me avisa, que eu volto. Ainda temos a distância, mas isso a gente dá um jeito. O que não tem jeito é a falta de amor.
O Francisco escreveu esse e-mail depois da enquete da semana passada, que perguntava “se dava pra largar tudo por amor”. Ele achava que as circunstâncias importavam, mas agora não sabe mais.
Lançando essa garrafa ao mar, ele responde ao Gustavo dizendo que está chegando em Vitória no sábado. E que, se ele quiser, é pra encontrá-lo na pizzaria “de sempre”. Com o amor de sempre.
A dor que dói mais
(Extra)
Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim. Mas o que mais dói é saudade.
Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que já morreu. Saudade de um amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, quando se tinha mais audácia e menos cabelos brancos. Doem essas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ele no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o aeroporto e ele para o dentista, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-lo, ele o dia sem vê-la, mas sabiam-se amanhã. Mas quando o amor de um acaba, ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.
Saudade é não saber. Não saber mais se ele continua se gripando no inverno. Não saber mais se ela continua clareando o cabelo. Não saber se ele ainda usa a camisa que você deu. Não saber se ela foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ele tem comido frango de padaria, se ela tem assistido as aulas de inglês, se ele aprendeu a entrar na Internet, se ela aprendeu a estacionar entre dois carros, se ele continua fumando Carlton, se ela continua preferindo Pepsi, se ele continua sorrindo, se ela continua dançando, se ele continua pescando, se ela continua lhe amando.
Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber. Não querer saber se ele está com outra, se ela está feliz, se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais querer saber de quem se ama, e ainda assim, doer.
- Martha Medeiros
Informações e imagens: The stories/Reprodução
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