História do domingo: Do outro lado do caminho
Velha infância
Em vez de se preocupar com o julgamento alheio, responda com sinceridade: a criança que você foi teria orgulho do adulto que você é?
Premiado em Cannes e indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional no ano passado, “Close” usa campos de flores para evocar a beleza frágil da juventude, bem como as armadilhas do crescimento.
• Enquanto alguns filmes apostam nos efeitos especiais e cenas de embrulhar o estômago, “Close” escolhe o silêncio. Mas na falta de palavras, dilacera.
Na história, Léo e Remi são melhores amigos. Inseparáveis, os dois passam o dia na casa um do outro, brincando, andando de bicicleta e compartilhando segredos e sonhos.
Saindo da infância e entrando na adolescência, a relação deles é abalada quando os colegas começam a questionar essa intimidade — o que leva a um acontecimento trágico, que guia o filme da metade para frente.
Nas palavras do próprio diretor, Lukas Dhont, “Close não é um filme sobre sexualidade ou homoafetividade, mas uma investigação sobre o nosso ideal de masculinidade”.
Se a conexão entre os protagonistas parece tão sincera no verão, marcado por cores vivas, por que ela passa a ser questionada quando envolve o julgamento de terceiros?
• É que, quando a gente é criança, a única coisa que importa é ser feliz. E quem define a nossa felicidade é a gente.
Mas aí a gente cresce, e passa a julgar o “certo e o errado” com base nos valores dos outros. Deixamos de lado nossas vontades e nos preocupamos só com a opinião do vizinho.
Como já dizia Fernando Pessoa, “a criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou. Mas hoje, vendo que o que sou é nada, quero ir buscar quem fui onde ficou.”
Ainda que seja impossível se desvincular completamente do julgamento alheio, é bom lembrar que as nossas escolhas são só nossas. Finalizando, novamente, com Fernando Pessoa, “mais vale ser criança que querer compreender o mundo”.
Do outro lado do caminho
(Baseado em uma história real)
Pedro e Marcelo se conheceram quando ainda eram adolescentes. Moravam em uma cidade no interior de Pernambuco, com menos de 20 mil habitantes e sem muitas possibilidades pro futuro.
• Pedro morava na casa branca. O Marcelo morava na casa verde. Eles estudavam na mesma escola, mas não eram muito amigos.
Na época, o Marcelo era bem tímido. Intitulado de “nerd da turma”, ele sentava na primeira carteira, conversava com todos os professores e passava os finais de semana lendo clássicos da literatura.
Seu pai era metalúrgico e sua mãe era professora. Os dois trabalhavam duro pra que ele pudesse ter um futuro melhor, e essa era quase uma certeza: ele iria passar no vestibular de medicina.
Na outra ponta, o Pedro era o “popular da turma” e sonhava em ser jogador de futebol.
Seu pai abandonou a família quando ele ainda era criança, mas sua mãe dava conta do recado: era mãe e pai, conseguindo manter a casa em ordem sem a ajuda de mais ninguém.
• Quando estavam no ensino médio, a dificuldade do Pedro em matemática — e a facilidade do Marcelo pra ensinar — fizeram com que eles virassem amigos.
Eles realmente estudavam, mas também conversavam sobre várias outras coisas. Descobriram algumas afinidades e se aventuraram conhecendo o mundo um do outro.
• Apesar de estar na turma dos populares, o Pedro criou uma amizade verdadeira com Marcelo, e não estava nem aí para os olhares e fofocas dos outros.
Inclusive, o Marcelo lembra muito bem de uma excursão específica, na qual todo mundo foi pra praia, e ele ficou sozinho. Quando percebeu o que tinha acontecido, o Pedro foi correndo chamá-lo.
Eles foram ficando cada vez mais próximos e o Marcelo sentia que o seu coração acelerava sempre que o Pedro chegava perto.
Ainda assim, não tinha coragem de tomar nenhuma iniciativa. Ele não sabia se o sentimento era recíproco e morria de medo de perder o seu melhor amigo.
• Até que… Quando estavam no terceiro ano, nas férias de julho, o Pedro foi visitar o seu avô, que morava em Recife.
Nessa viagem, eles conversaram todos os dias. Ficavam horas no MSN e ainda faziam Skype dia sim, dia não. Nessas férias, o Marcelo lembra de viver pela espera da próxima ligação.
E foi depois de desligar pela última vez que ele decidiu: assim que o Pedro voltar, eu vou falar tudo pra ele.
Ele já tinha até escolhido as palavras e o lugar, e não tinha mais medo de perder o amigo. Sabe quando o sentimento é tão forte, que fica impossível guardá-lo dentro da gente?
• E aí o Marcelo foi pra aula, mas o Pedro não estava. A professora estava chorando, e os colegas não sabiam o que tinha acontecido.
Foi aí que a diretora chegou na sala, e disse que não ia ter aula. Contou que o Pedro — que estudou lá a vida inteira — tinha sofrido um acidente na estrada, e mais tarde seria o velório.
O Marcelo perdeu o chão e nem lembra o que aconteceu depois disso. Parece que a mente dele apagou tudo o que se passou nesse dia 27 de julho. E nos outros seguintes também.
Hoje, ele é médico e mora no Rio de Janeiro. Já se passaram mais de 15 anos dessa história, mas ele ainda pensa no Pedro, com frequência.
• Inclusive, na semana passada, ele assistiu o filme “Close”, e lembrou e lembrou muito dos dois.
Revivendo memórias — e segurando muito choro —, Marcelo ficou com vontade de escrever. Sem nem saber quem leria, mas só com vontade de eternizar suas lembranças.
Onde quer que o Pedro esteja, o Marcelo espera que tenha muito futebol. E também espera que ele tenha partido sem dor, e com a certeza de que era muito amado por aqui.
Pra confortar seu coração, sempre que pensa no Pedro, o Marcelo lê um texto do Santo Agostinho, que diz que quem parte “não está longe, mas apenas do outro lado do caminho”.
Texto e imagens: The stories/Reprodução
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