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História do domingo: Fé na vida

Boas mentes


Segundo Gabriel Harcía Márquez, “o segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão”.


Pacto eterno


Que minha solidão me sirva de companhia.


que eu tenha a coragem de me enfrentar.


que eu saiba ficar com o nada


e mesmo assim me sentir


como se estivesse plena de tudo.


O trecho faz parte do último romance da Clarice Lispector, “Um sopro de vida”. Escrito às vésperas da sua morte, o livro foi de fato um sopro da vida da autora, que precisava escrever pra se sentir viva.


Nas primeiras páginas, o narrador já anuncia: “Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida. Viver é uma espécie de loucura que a morte faz”. 


• Adentrando no trecho escolhido, Clarice entende que a paz de “envelhecer” anda de mãos dadas com a aceitação da solidão.


Usando as palavras de Orson Welles, “nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. Somente através do amor e das amizades é que podemos criar a ilusão, durante um momento, de que não estamos sozinhos”.


Na teoria, é até bonito falar de solitude, mas e quando a cama vazia parece um enorme campo de futebol? E quando não tem ninguém pra roubar a batata frita na hora do almoço?


E quando ficamos sem companhia pra dividir a garrafa de vinho? Ou pior: e quando a gente divide a taça, mas o silêncio comprova que a solidão também aparece quando tem algum “estranho” ao nosso lado?


• A verdade é que Orson Welles tem razão: mesmo acompanhados, estamos sempre sozinhos.


Ainda que você tenha um grande amor ao seu lado — pra dormir de conchinha e dividir o cobertor —, quando ele vai dormir, são só os seus pensamentos que te acompanham.


Para alguns, isso pode parecer angustiante. Mas, pra quem aprende a gostar da própria companhia, é também libertador saber que a nossa mente será sempre o nosso lar.


Começando com Clarice e finalizando com Gabriel García Márquez, “o segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão”.


Fé na vida

(Baseado em uma história real)



O avô da Raíssa era uma pessoa de fé. Fé pela vida, fé pelas pessoas que ele amava, fé pela força do trabalho honesto e uma fé inquestionável por Nossa Senhora Aparecida.


• Ela nunca conheceu alguém tão devoto e afirma com convicção que aprendeu a ter fé com ele.


Cresceu ouvindo histórias das suas romarias a cavalo e a pé para Aparecida do Norte. Viveu rodeada pelas festas cheias de tradição em seu sítio e até aprendeu algumas orações em latim.


Em suas palavras, seu avô era realmente um relicário inteiro do significado de amor. Mais especificamente falando, do seu amor.


A Raíssa lembra de sempre arrumar motivos para dormir com seus avós aos finais de semana. Ela arrumava motivos só pra chegar na casa deles — e ver o seu avô aguardando na varanda.


• Ela também se lembra das inúmeras vezes em que acordou no meio da noite e pediu colo depois de um pesadelo.


Recorda das tardes inteiras que eles passavam no quintal, que era um cenário de encontros e despedidas.


Lembra de ouvir os casos do seu avô, se divertir com suas histórias ou aprender com seus conselhos. Lembra também de simplesmente viver o aconchego do silêncio que era só dos dois.


A Raíssa contava da sua vida, fazia piada e tentava arrancar um sorriso do seu avô. Ela sempre falava que o amava, e recebia de volta um: “eu também, meu coraçãozinho”.


• Na benção de cada despedida, ele desejava pra ela um “boas mentes” porque sabia que não existe bem mais valioso do que o nosso pensamento.


E ele odiava tanto despedidas que sempre ficava na varanda vendo os netos irem embora de carro. A Raíssa também tinha dificuldade com o “adeus”, e vivia pela ânsia do reencontro.


Usando as palavras de Annie Ernaux, ela diz que foi ignorando “o tempo passando por ela”, negligenciando a possibilidade da ausência.


Mas esse tempo se congelou em uma tarde no consultório médico. Seu avô descobriu um câncer maligno raro, e ela rezou e pediu para o tempo continuar congelado.


• Mas o tempo não ajudou. Em pouquíssimos meses — no dia de Nossa Senhora Aparecida —, seu avô descansou.


Não foi fácil. A Raíssa se fechou em seu silêncio. Queria que o tempo acelerasse e, por muitos meses, não conversou sobre o barulho estrondoso que era a ausência do seu avô.


Agora, chegou o mês do aniversário dele, e ela decidiu celebrar esse relicário de memórias que ele deixou dentro dela. Celebrar essa ligação que só pode ser de outras vidas.


A Raíssa continua sentindo a ausência do seu avô todos os dias. Hoje, a falta não faz mais tanto barulho quanto antes, mas ela continua fechando os olhos e pedindo a benção.


• Ela queria que o seu avô soubesse que, a cada dia, ela tenta se tornar mais forte e corajosa. E que se lembra dele quando vê girassóis.


Ela também queria deixá-lo tranquilo, garantindo que cuida muito bem da vovó. E queria agradecê-lo pelo desejo diário de “boas mentes”.


Por ter convivido com seu avô, ela carrega a certeza de que estará sempre abençoada. Se a “nossa mente é o nosso lar”, o lar da Raíssa está repleto de memórias lindíssimas.


Informações e imagens: The stories/Reprodução


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