Antes tarde do que nunca
Depois de 55 anos, mary e raymond mostram que o amor não tem idade e é pontual: chega sempre na hora certa.
Loucura de amor


A frase acima foi dita por Friedrich Nietzsche em seu livro “Assim Falou Zaratustra”, um dos trabalhos filosóficos mais lidos e influentes de todos os tempos.
• Um dos motivos da extraordinária relevância da obra é o seu caráter híbrido, que une filosofia, religião e literatura de maneira complexa e atraente.
Nietzsche sempre foi conhecido por fazer questionamentos e ter uma “alma rebelde”, que demonstra a sua intensidade ao dizer que “há sempre alguma loucura no amor”.
Até porque o amor é, por si só, a nossa maior demência. A nossa maior fragilidade. Que pode nos levar ao estado agudo de felicidade da Clarice Lispector ou ao vício pela tristeza de Gustave Flaubert.
Só mesmo um louco consegue amar sabendo que o sentimento pode te levar à Lua ou ao fundo do poço. Só mesmo um inconsequente para se deixar levar por uma condição que te faz perder o controle.
• “Mas há sempre um pouco de razão na loucura” porque ainda que esse amor quebre a barreira da sanidade, é preciso sabedoria pra seguir em frente.
Viver um amor que te mata não é ser louco, e sim suicida. Viver um amor que te aprisiona não é ser intenso, e sim se tornar prisioneiro de um sentimento que era pra te dar asas.
Depois de algumas experiências, a gente percebe que só o amor não basta. Então, talvez, a maturidade determine quem poderá ser alvo desse amor.
Mas, ainda com toda essa sabedoria, é impossível viver um amor de forma totalmente racional. Se for pra amar, que seja pra calar o juízo — e deixar a razão em sobreaviso.
Em vez de tentar guardar a loucura na gaveta, aceite o que não tem explicação. Como já dizia Clarice Lispector, não entender é tão vasto que ultrapassa qualquer entendendimento. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras.
Garrafa lançada ao mar
(Baseado em uma história real)

Em 1958, o pai da Mary foi transferido pra Suíça. Ela era adolescente e amava pintar, por isso ingressou em um curso de artes na cidade de Lausanne.
• Enquanto esperava na secretaria da escola, a brasileira se apaixonou à primeira vista por um suíço loiro e de olhos azuis.
Com uma troca de olhares, Mary percebeu que também houve interesse da parte dele. E aí, um certo dia, Raymond sorriu, e perguntou se a carioca gostaria de tomar um café.
Depois desse dia, eles não pararam mais de conversar. Mary conta que, quando começaram a sair, ela sentiu imediatamente que ele era especial — tranquilo, bom de papo e amante das artes.
Após um tempo de namoro, em que só davam as mãos, ela tomou a iniciativa para o primeiro beijo acontecer.
• Nunca tinha tido a iniciativa de beijar ninguém, mas quando chegamos na porta do apartamento onde eu estava morando, taquei um beijo nele e a sensação foi maravilhosa.
Viveram meses desse romance gostoso, mas que tinha prazo de validade. Depois que acabou o período de trabalho do pai da Mary, ela retornou ao Brasil — e eles perderam contato.
As ligações eram impossíveis e as cartas demoravam meses pra chegar. Se um relacionamento à distância já é difícil nos tempos atuais, no século passado nem existia essa possibilidade.
Mary voltou, mas não se esqueceu do seu amor. Quando ouvia as músicas que eles dançavam, ela se lembrava dele. Quando revia um filme que eles assistiram juntos, ela chorava.
Mas o mundo continua girando, e a vida seguiu. Mary formou-se em artes plásticas e constituiu uma carreira sólida. Casou-se três vezes, teve três filhos e oito netos.
• Já Raymond, casou-se uma única vez, ficando viúvo em 2012. Os dois nunca mais tiveram notícias um do outro.
Até que, em 2013, 55 anos depois do romance adolescente, Mary recebeu uma carta amarela de Raymond, com as seguintes palavras:
“Em 1958, em Lausanne, tive a oportunidade de conhecer uma charmosa brasileira que eu tinha o prazer de chamar pelo nome do delicioso perfume de Guerlain que lhe caia tão bem... “Mitzuoko”...
Durante alguns meses ela frequentou a mesma escola que eu, o Instituto Atheneum, seu pai teve a honra de representar o Brasil na exposição Universal de Bruxelas.
Portanto, se meu nome e estas palavras têm algum significado para você, tenha a gentileza de me confirmar, parece-me que esta poderia ser um ocasião maravilhosa de simplesmente trocarmos algumas palavras, algumas memórias…
P.S.: Eu lhe envio esta carta um pouco como quem lança uma garrafa ao mar!... “
Como Rubem Alves já dizia, cartas de amor são escritas não para dar notícias, mas para que mãos separadas se toquem ao tocar a mesma folha de papel. E, no caso dos dois, a ausência tinha cheiro, gosto e toque.
• O envelope ainda veio junto com um isqueiro antigo e uma foto da Mary que o Raymond havia guardado.
Divorciada há 14 anos, ela ligou pra sua filha, que sabia do antigo amor da mãe, e a aconselhou a respondê-lo por e-mail. O contato inicial foi feito e eles começaram a conversar.
Aos 74 anos, Mary não queria mais pensar em relacionamentos, mas descobriu que ela e o Raymond haviam envelhecido na mesma direção — e ainda compartilhavam dos mesmos interesses.
Dois meses depois da troca de e-mails, eles combinaram de se encontrar na Suíça. Sabiam que não eram as mesmas pessoas de 1958, então se controlaram nas expectativas.
• Mas, como a faísca permaneceu viva, a primeira troca de olhar foi descrita por eles como “um casamento de almas”.
Raymond disse que queria ir vivendo, sem se preocupar com o futuro. Mary respondeu que, se ele quisesse, ela se casaria com ele. Em resposta, Raymond colocou uma aliança no seu dedo.
Essa história foi uma das primeiras a aparecer por aqui, mas, depois de 10 anos juntos, a Mary queria falar para os nossos leitores que o amor não tem idade e é pontual: chega sempre na hora certa.
Hoje, aos 85 anos, eles têm até vergonha de contar que a vida ainda é muito boa. Sabem que nessa idade é tudo mais difícil, mas se cuidaram pra chegar até aqui com saúde.
• Raymond faz yoga todos os dias. Não fala muito, mas é atencioso, amoroso e sabe escutar como ninguém.
Como não teve filhos, ele foi “adotado” pela família da Mary, e é apaixonado pelo Brasil. Hoje, eles ficam 4 meses na Suíça — quando é verão —, e passam o resto do ano em São Paulo.
Ainda que essa história seja digna de filme, a Mary lembra que ela é só um recorte da sua vida. Até hoje, ela continua trabalhando, e vivendo a vida através dos seus filhos e netos.
A história de amor dos dois demorou pra engatar, mas aconteceu da forma que deveria acontecer. Às vezes, é preciso um golpe de loucura para que o destino seja traçado. Ainda bem que a garrafa foi lançada ao mar.
Texto e imagens: The Stories/Reprodução
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