História do domingo: Hoje eu senti sua falta
Carta aberta
Bom dia. Esse e-mail de domingo não deve chegar até o destinatário. Mas, se por um milagre chegar, será que dá pra avisar?
Consolo na praia
Vamos, não chores
A infância está perdida
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu
O primeiro amor passou
O segundo amor passou
O terceiro amor passou
Mas o coração continua
Perdeste o melhor amigo
Não tentaste qualquer viagem
Não possuis carro, navio, terra
Mas tens um cão
Algumas palavras duras
Em voz mansa, te golpearam
Nunca, nunca cicatrizam
Mas e o humor?
A injustiça não se resolve
À sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido
Mas virão outros
Tudo somado
Devias precipitar-te, de vez, nas águas
Estás nu na areia, no vento
Dorme, meu filho
O texto “Consolo na Praia”, de Carlos Drummond de Andrade, é um diálogo íntimo, quase um monólogo consolador, onde o autor fala sobre a aceitação das perdas na vida.
A infância, a juventude, os amores, as amizades. Se a gente parar pra pensar, quase tudo passa.
Mas, com as perdas, também existe a valorização do que permanece. O coração continua batendo, um cão traz alegria e o humor cura as palavras duras que te golpearam.
Como já dizia Chico Buarque, tudo é vário. Temporário. Efêmero. Nunca somos, sempre estamos. Mas por que alguns sentimentos (diga-se de passagem os mais ridículos) demoram tanto a passar?
É que os amores vão embora, mas deixam vestígios no coração. As palavras duras o vento leva, mas as cicatrizes do que foi dito permanecem ali.
Mas aí a gente lembra da Carla Madeira, quando disse que a vida dá um jeito de manter a gente vivo mesmo quando a gente morre de dor.
A gente lembra que tudo passa, mesmo quando a memória fica. A gente lembra que a injustiça não se resolve, mas abrimos um sorriso ao constatar que o coração continua.
A imagem final no poema, de estar “nu na areia, no vento” traz uma sensação de vulnerabilidade e exposição, mas também de liberdade. De renovação para as infinitas possibilidades da vida.
E aí a gente vai dormir, sabendo que amanhã é outro dia. A gente acalma o coração, e passa a enxergar a vida como Rubem Alves: infinitamente bela, insuportavelmente efêmera.
Se você gostou do texto do Carlos Drummond de Andrade, vai se surpreender ainda mais com essa versão na voz da Maria Bethânia. É de arrepiar. ✨
Hoje eu senti sua falta
(Baseado em uma história real)
A Cecília ainda entorta a cara quando falam do Afonso, mesmo depois de tanto tempo daquele fim desajeitado.
Aliás, ela acha que esse fim não vem ao caso. O que vem ao caso são as várias coisas que ela concluiu depois de tudo.
• Ela lembra de como se esqueceu dela mesma, por um instante, pra entrar no mundo do Afonso.
Lembra que aquele mundo talvez nem combinasse com ela — mas ela insistiu, só pra provar pra ele que caberia ali.
Deixou de lado algumas coisas que eram importantes pra ela. Deu mais importância do que deveria para algumas coisas que eram importantes pra ele. Deixou o “eu” se misturar com o “nós”.
Ainda assim, há várias coisas sobre ela que só desabrocharam por causa dele. Coisas que talvez sempre estiveram ali, mas precisavam de um “empurrão” pra florescer.
Se antes a Cecília se sentia deslocada no mundo, sem se entender, hoje, ela tem muito mais coragem.
Se antes ela achava que era impossível amar de novo, hoje, ela sabe que nunca é tarde. Se antes ela achava que os sentidos se gastavam com o tempo, hoje, ela agradece por lembrar do cheiro do Afonso.
• E se antes ela pensava que ninguém a amaria por inteiro, hoje, ela sabe que não consegue ser metade.
Mas perceber que ela não precisava do Afonso para continuar se descobrindo foi muito bom. Foi libertador. No silêncio, ela entendeu que precisava se ouvir. E se perdoar.
Assim, com o tempo, o Afonso deixou de ser uma constante na sua vida. A dor foi se dissipando, e ela parou de pensar no que poderia ter sido, e de comparar os erros e acertos.
Parou de pensar nele.
Só que, esses dias, veio o pensamento de como estão as coisas, talvez porque o noticiário trouxe algo que mexeu, como o acidente da empresa aérea que ele é piloto.
• Ou talvez porque o Oasis está voltando. Ou porque ela lembrou de quando eles se cruzaram em uma trilha no meio da floresta. Bizarro esse dia.
Surgiu a vontade de perguntar como o Afonso está, mas a história deles é tão forte que isso parece impossível. Faz parte daquele capítulo que foi difícil virar a página — porque mudou a história toda.
A Cecília não sabe mais quem ele é, ou o que está fazendo hoje, e talvez seja melhor assim.
De lá pra cá, a única coisa que não mudou é que ela sempre quis vê-lo realizando os seus sonhos. Inclusive aqueles que levaram ao fim do relacionamento dos dois.
A Cecília espera que o Afonso esteja feliz. Ela está. É apenas uma nostalgia de querer saber como a vida o trata. Conversar por horas era algo que eles faziam bem.
• Bom, ela realmente entorta a cara quando falam dele, mas nunca foi por achar que não valeu o tempo.
Ela entorta a cara por saber o que houve. Por saber que o amor, às vezes, não é suficiente. Ela entorta a cara pela avalanche de lembranças e pela insustentável leveza de tudo.
Ela sabe que o Afonso nunca vai ler isso, mas fica uma marca de um dia em que ela sentiu a falta dele.
O lembrete da frase que apareceu no the stories de que alguns amores não serão nossos e isso nem sempre é ruim. Faz parte da vida, e como já dizia Carlos Drummond de Andrade, o coração continua.
Texto e imagens extraído: The stories / Reprodução
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