História do domingo: Porta fechada
The Way You Look Tonight
Algum dia
Quando eu estiver terrivelmente pra baixo
Quando o mundo estiver frio
Eu vou me sentir brilhar só de pensar em você
E na forma como você está esta noite
Sim, você é encantadora
Com seu sorriso quente
E suas bochechas tão macias
Não me resta outra opção, a não ser te amar
E à forma como você está esta noite
A cada palavra você fica mais doce
Acabando com meus medos
E aquela risada
Deixa ruguinhas no seu nariz
Toca o meu coração tolo
Amada
Nunca, nunca mude
Mantenha esse charme de tirar o fôlego
Você poderia, por favor, fazer isso?
Porque eu amo você
Exatamente da forma que você está esta noite
Essa é a tradução da música “The Way You Look Tonight”, originalmente composta por Jerome Kern e Dorothy Fields para o filme “Swing Time”, de 1936.
• Imortalizada pela voz de Fred Astaire, ela levou o Oscar de Melhor Canção Original — e depois ganhou versões de Frank Sinatra e Rod Stewart.
Além do ritmo que nos teletransporta pra uma cena de filme do Woody Allen, a letra da música é um ode à beleza e ao encanto do amor, captando com precisão aquele início de paixão.
Inclusive, a repetição de “the way you look tonight” — em português, a forma como você está essa noite — não fala apenas do aspecto físico, mas daquela alegria que se transforma em beleza.
As referências aos detalhes — como o “sorriso que enruga o nariz” — mostram características que não são propriamente bonitas, mas materializam o apego de quem está presente na relação.
• Deixando todo o resto do mundo de lado, Marisa Monte já descreveu a paixão dizendo que “mesmo triste, ela estava feliz”.
E é por isso que a composição de Jerome Kern diz que “alguma dia, quando estiver terrivelmente pra baixo, quando o mundo estiver frio, eu vou me sentir brilhar só de pensar em você”.
Colocando os pés no chão, todo mundo sabe que esse estado de paixão nunca é eterno. Na maior parte do tempo, a gente está resolvendo problemas e vivendo o tédio da rotina.
Mas, ainda que esses segundos de felicidade aguda sejam bem raros, é bom guardá-los com carinho na memória. E aí, quando você estiver pra baixo, pode dar um sorriso só de lembrar “como você estava naquela noite”.
Porta fechada
(Baseado em uma história real)
A Adriana conheceu o Lúcio em 1998, quando ainda era estudante de publicidade e frequentava bares de ambientes insalubres e se afogava em bebidas de procedência duvidosa.
• Na época, ele trabalhava como garçom no antigo “boteco do seu Nelson”, mas sonhava em abrir o seu próprio restaurante.
Em uma quinta-feira, o Lúcio acabou o expediente mais cedo, e ficou de papo com a Adriana enquanto um grupo de pagode — um tanto quanto desafinado — tocava os sucessos do Raça Negra.
Saíram pela primeira vez na semana seguinte, e ele até arriscou mostrar os seus dotes culinários pra ela.
Fez o espaguete ao sugo que era especialidade da sua avó, e gastou quase 1/5 do seu salário em um vinho pra impressionar a Adriana.
• Os dois conversaram sobre sonhos e angústias. Dançaram “The Way You Look Tonight” na cozinha, e cantaram “My Way” no caminho até o quarto.
À primeira vista, não tinha muitas coisas em comum. Ela gostava de samba, e ele de Frank Sinatra. Ela queria trabalhar em uma grande agência e mudar pra fora do país. Ele queria abrir um restaurante italiano.
Quando se beijaram, a Adriana se sentiu feliz. Usando as palavras da Tayari Jones, “ela se sentiu abençoada no sentido antiquado, no sentido de uma pessoa encontrando outra de cujo cheiro gostava”.
A partir dali, resolveram seguir a vida juntos. Nunca tiveram uma conversa pra rotular o que tinham, mas sabe quando tudo vai fluindo de forma leve? Com eles foi assim.
• Depois de 1 ano, juntaram as escovas de dente e passaram a dividir o sofá, as contas e o cobertor.
A Adriana acabou não atuando em nenhuma empresa de publicidade, mas se encontrou como gerente em uma loja de calçados. O Lúcio continuou ralando como garçom — e juntando dinheiro pro seu grande sonho.
As vacas eram magras nesse início, mas eles se divertiam como dava: iam ao cinema, passavam as férias em Guarapari e continuavam dançando na sala e na cozinha de casa.
O Lúcio sempre pedia pra Adriana fazer cafuné, e retribuía o carinho fazendo massagem nos seus pés. Eles conversavam sobre tudo, e nunca iam dormir brigados.
• Depois de alguns anos, o restaurante “Receitas da Nonna” foi inaugurado, e os dois comemoraram o feito como se não houvesse amanhã.
Precisaram de alguns empréstimos e muitas noites mal dormidas, mas todo o esforço valeu a pena. Para a Adriana, não existe nada mais gostoso do que realizar um sonho com quem a gente ama.
Os anos foram passando, e eles se mudaram pra um apartamento maior. Trocaram Guarapari por Ubatuba, e até começaram a frequentar alguns dos restaurantes bacanudos da cidade.
Tinham tudo pra estarem cada dia mais felizes, mas aí o Lúcio começou a chegar mais tarde em casa.
• Na hora do jantar, eles não tinham tanto assunto assim, e preferiam assistir jornal do que conversar.
A Adriana sentia falta de quando o Lúcio ainda pedia cafuné, e cansou de esperar pela massagem que “ele ia fazer depois”.
Ela lembra do dia exato em que os dois estavam voltando de uma festa, e o silêncio no carro escancarou uma verdade dolorosa: a solidão é ainda maior quando a pessoa continua do nosso lado.
E aí, no dia seguinte, enquanto a Adriana estava a caminho do trabalho, “The Way You Look Tonight” começou a tocar no rádio, e as lágrimas inundaram o seu rosto.
• Foi quando ela decidiu que precisava ir embora, mesmo sabendo que ainda existia amor.
Eles conversaram, e ela arrumou as suas coisas. O Lúcio chorou copiosamente, mas não pediu pra que ela ficasse. Aí a Adriana fechou a porta — e foi embora escutando Frank Sinatra.
O contrário do amor
(Extra)
O contrário de bonito é feio, de rico é pobre, de preto é branco, isso se aprende antes de entrar na escola. Se você fizer uma enquete entre as crianças, ouvirá também que o contrário do amor é o ódio. Elas estão erradas. Faça uma enquete entre adultos e descubra a resposta certa: o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença.
O que seria preferível, que a pessoa que você ama passasse a lhe odiar, ou que lhe fosse totalmente indiferente? Que perdesse o sono imaginando maneiras de fazer você se dar mal ou que dormisse feito um anjo a noite inteira, esquecido por completo da sua existência? O ódio é também uma maneira de se estar com alguém. Já a indiferença não aceita declarações ou reclamações: seu nome não consta mais do cadastro.
Para odiar alguém, precisamos reconhecer que esse alguém existe e que nos provoca sensações, por piores que sejam. Para odiar alguém, precisamos de um coração, ainda que frio, e raciocínio, ainda que doente. Para odiar alguém gastamos energia, neurônios e tempo. Odiar nos dá fios brancos no cabelo, rugas pela face e angústia no peito. Para odiar, necessitamos do objeto do ódio, necessitamos dele nem que seja para dedicar-lhe nosso rancor, nossa ira, nossa pouca sabedoria para entendê-lo e pouco humor para aturá-lo. O ódio, se tivesse uma cor, seria vermelho, tal qual a cor do amor.
Já para sermos indiferentes a alguém, precisamos do quê? De coisa alguma. A pessoa em questão pode saltar de bungee-jumping, assistir aula de fraque, ganhar um Oscar ou uma prisão perpétua, estamos nem aí. Não julgamos seus atos, não observamos seus modos, não testemunhamos sua existência. Ela não nos exige olhos, boca, coração, cérebro: nosso corpo ignora sua presença, e muito menos se dá conta de sua ausência. Não temos o número do telefone das pessoas para quem não ligamos. A indiferença, se tivesse uma cor, seria cor da água, cor do ar, cor de nada.
Uma criança nunca experimentou essa sensação: ou ela é muito amada, ou criticada pelo que apronta. Uma criança está sempre em uma das pontas da gangorra, adoração ou queixas, mas nunca é ignorada. Só bem mais tarde, quando necessitar de uma atenção que não seja materna ou paterna, é que descobrirá que o amor e o ódio habitam o mesmo universo, enquanto que a indiferença é um exílio no deserto.
(- Martha Medeiros)
Texto e imagens: The stories/Reprodução
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